sábado, novembro 25, 2006

Deixa o homem trabalhar...

Dr. Otaviano tinha uma cadela vira-latas chamada Scarlet Ohara, um desses nomes boçais, da mesma família que Odete ou Janete. Menos comum, mas do mesmo mau gosto. De qualquer forma combinava com o bicho e, na verdade, a cachorra era mais da casa, da faxineira, da esposa, do que dele mesmo.

Às vezes fazia o favor de levá-la para passear perto de casa para que cagasse ou mijasse no patrimônio alheio. Scarlet preferia calotas de carros, sobretudo os vermelhos. Sua cadela, diferentemente dos outros cães, enxergava cores.

Odiava dias como aquele, abafados e úmidos, que por algum motivo veterinário, faziam o bicho urinar baldes. “Os animais são tão cheios de mistérios”, filosofou. Mas, sem dúvida, era melhor perder quinze minutos na rua do que limpar toda a cozinha. Fez o favor de encoleirar o bicho e dar uma volta. Desceu dezoito andares até a portaria, pelo elevador de serviço.

Na esquina, a filha da vizinha namorava um dos marginais da classe média tijucana. “Não ter uma filha é uma sorte”, concluiu. Tentou se apressar em voltar logo e assistir à merda do telejornal. Mas a maldita cadela não parava de jorrar em cada poste, hidrante ou carro que encontrava. “Passa um ônibus aqui agora e jogo essa filha-da-puta debaixo da roda. Deus me perdoe.”

Como o mundo e a subliteratura são cheios de coincidências, ao retornar ao prédio, a filha da vizinha também esperava o elevador.

– Boa noite.
– Boa noite.
– Qual seu andar?
– Trêzimo, por favor.
– Ah, sim. O treze. Décimo terceiro.
– Isso. Décimo terceiro.
– Número da sorte.
– É o que dizem, né?
– Vi você com seu namorado, agora na rua.
– É. Eu também te vi... Não é namorado não. Só amigo.
– Ah, claro.
– Não gosto dele. Ele que gosta de mim.

A cadela deu um latido, atrapalhando a intelectualidade do assunto.

– Cala a boca, Scarlet.
– Scarlet?
– Foi minha mulher que colocou o nome.
– Por causa do filme. Do vento Levou, não é isso?
– Esse mesmo. Minha mulher adora... na verdade, não gosto muito.
– Chegou. Tchau.
– Tchau.

A garota saiu e Otaviano deu uma bufada com som de risada, achando engraçado o bate-papo. “Quantos anos tem essa garota? Tão nova e com uns peitões assim. E sem sutiã. Será que os pais não enxergam isso? Se fosse minha filha não saia de casa assim não.”

– Calada, Scarlet!

Alguns dias depois e Otaviano precisou cumprir seu dever cívico de votar em um dos candidatos à presidência. Calçou os mocasins e partiu para a escola pública, a três ou quatro quarteirões de sua casa. No trêzimo andar, o elevador parou.

– Oi, bom dia, seu Otavio.
– É Otaviano. Bom dia.
– Não vai levar o cachorro não?
– Ela vota em outra zona, diferente da minha.
– Hahaha. Escuta, seu Otaviano. É Lula, né? Vai votar no Lula, né?
– Não. Vou votar no Serra.
– Sério? Meus pais foram até Minas só pra votar no Lula. Não quiseram nem justificar. Fizeram questão de ir lá votar.
– Mudando de assunto, qual é o seu nome que eu não sei ainda?
– Maristela, mas todo mundo me chama de Mari. Eu tô indo votar também.
– Você vota onde?
– No Pedro II
– Em frente ao Colégio Militar?
– Lá mesmo. O senhor também?
– Sim. Vou andando até lá.
– Eu também.
– Mas você já vota? Desculpe, quantos anos você tem?
– Dezessete.
– Nossa, eu poderia ser seu pai.
– Se fosse meu pai, votaria no Lula e não no careca do Serra. Que homem feio, parece o cara da família Adams.
– Quem? Família de quem?
– Deixa pra lá. É um filme. E você tem quantos anos?
– Cinqüenta. Pois é, eu poderia ser seu pai.
– Meu pai tem menos.
– Então poderia ser teu avô.
– Hahaha. Não. Cinco anos só de diferença. Meu pai tem quarenta e cinco.

Na zona eleitoral, Otaviano mostrou a carteira de motorista. Rapidamente digitou o 45 nas teclas da urna eletrônica, sabendo que seria em vão. “ Por que fui estudar? Esse analfabeto vai ganhar essa eleição e ser presidente. País de merda. Mineiros filhos-da-puta.”, pensou, lembrando dos vizinhos. “Gostosa... dava-lhe uma pirocada”, pensou lembrando da filha deles. Falando nisso, a peituda esperava pelo cinquentão na calçada.

– Agora vou almoçar.
– Bom, eu também. Minha esposa está trabalhando. Ela é jornalista.
– Vai comer na rua também?
– É, sei lá.
– Vou comer no Mac Donald´s. Tá afim?
– Bom, pode ser...

Por alguns momentos sentiu vontade de ser pai. De poder fazer o mesmo com sua filha. Mas aceitava resoluto a monotonia e a distancia da vida conjugal de alguém que é casado com uma jornalista. Em outros momentos sentia um jato de sangue preenchendo seus corpos cavernosos toda vez que olhava dentro do decote da camiseta branca da rapariga. “Hoje ela está com sutiã. Não vai dar pra ver nada.”, pensava enquanto tentava manter a integridade e correção política coerentes à sua idade. “Socava-lhe a rola”, concluía, no final das contas.

– Número quatro com suco de laranja.
– O mesmo pra mim.
– Eu não bebo refrigerante. Para manter a forma.
– Na sua idade, podemos cometer as maiores loucuras...
– É mesmo?
– É... como comer chocolate sem culpa, tomar sorvete, essas coisas, sem engordar.
– Vai voltar pra casa depois daqui?
– É. Assistir televisão. Qualquer coisa que não seja o Faustão.
– Ah, eu gosto do Faustão. Quer ir lá pra casa?
– Como?
– Eu aluguei um filme que não vi ainda. Se quiser assistir comigo, tudo bem.
– Bom, eu nem conheço seus pais. Cruzei poucas vezes com eles no elevador. Será que eles não ficariam preocupados se algum estranho fosse na casa de vocês sem eles saberem?
– Não. Eles confiam em mim.
– Desculpe. Melhor não. Mas eu agradeço pelo convite.

Otaviano até inventou uma desculpa para não tomar o mesmo caminho para o prédio. Os pensamentos maldosos que invadiram sua mente durariam até o segundo mandato da cavalgadura presidencial e definitivamente concluiu que basta uma ocasião para fazer o ladrão.

quinta-feira, setembro 21, 2006

Um ano de morte


Pois bem. Ao exercício da escrita, sem tanta inspiração ou vontade. Somente como em uma redação onde se tenta evitar os erros gramaticais.

Há um ano voltei da França. Desde então tenho me deparado com experiências cheias de sensação de morte. Marie (minha esposa) continuou por lá enquanto eu iniciava o trabalho no novo emprego e ajeitava o apartamento para sua chegada e do bebê que esperávamos.
Marie veio só. E no grande apartamento que aluguei um dos quartos está vazio até hoje. E tudo foi tão rápido, desde minha união com Marie até carregar a dor do filho perdido. Tudo se passou assim, muito derepente.

Quando Marie chegou, já estava enfiado no trabalho. Levando porradas de todo lado e tentando manter o ganha pão, em processo de engorda, até ganhar vinte quilos em um ano. Em casa, em vez de descanso, os biscates. Nada de prazer. Somente trabalho. E contas a pagar. Doze meses de aluguel, condomínio, uma casa inteira a mobiliar, dívidas a quitar.

Ontem a médica, depois de olhar a bateria de exames, diagnosticou depressão, início de hipertensão e início de cirrose; tudo causado por má alimentação e estresse. Remédios que somam quase duzentos reais.

Ter chegado vivo até aqui e sem dever nada pra ninguém já me deixa muito feliz. Em algum lugar deste blog eu disse anteriormente que o que nos mata é nossa própria vida e que tudo só faz sentido quando se vive para o outro.

É, é isso mesmo.


quarta-feira, junho 01, 2005

Pura ficção...

Era uma boa amiga, daquelas que mantém uma distância segura e confortável do sujeito, mas que não pensam duas vezes em pedir que o otário a deixe em Jacarepaguá, o mais remoto dos cafundós do planeta Terra. Menos mal que desta vez, depois de um aniversário qualquer comemorado em meio de semana, seria mais prático dormirmos lá em casa. Aceitou vestir uma camiseta qualquer e, acreditem, uma de minhas cuecas. Após enfiar por sua goela abaixo comprimidos de Engov e Aspirina, por correção política ofereci minha cama, enquanto torturei as vértebras do que me restou de coluna no sofá da sala. Acordei algumas vezes com seus roncos altíssimos, achando que ela poderia estar se afogando em mais uma golfada de vômito verde.

Era cedo quando levantei e desci até a garagem para reparar o estrago da noite anterior. Liguei o rádio do carro, escutei 54 minutos de música sem nenhum intervalo comercial. Limpei o banco do carona e lavei os tapetes, sabendo que o cheiro azedo ficaria ainda por algumas semanas. Na volta, entrei pela cozinha e senti cheiro de café. Concluí que ela já teria acordado e fiquei tranqüilo com a certeza de que não teria se atirado pela janela. Entrei despreocupado. Tranqüilo até demais para perceber a luz do banheiro acessa e a porta totalmente aberta. Sua carcaça ressacada estava sentada no vaso sanitário com o queixo apoiado nas duas mãos e os cotovelos sobre os joelhos. A cueca emprestada, caída no chão, presa entre os seus tornozelos. A camiseta grande lhe cobrindo as coxas por completo, dando-lhe uma certa privacidade.

– Desculpe. Quer que feche a porta?
– Uma fulana aí telefonou pra você. O recado está na secretária. "Aqui é a fulana. Quando você puder, me dá uma ligadinha... meu telefone é blá-blá-blá..." Uma voz de piranha! Deve ser uma das tuas amigas...
– Você é uma das minhas amigas. O que você está fazendo aí?
– Vai ver ela é da Amway ou da Herbalife. O que eu estou fazendo? O que você acha? Olha, estou com uma puta dor-de-cabeça... de mau humor. Sai da porta, sai...
– Não tem nada aí que eu não saiba como é.
– Pode ficar, então. Grandes coisas. Não me importo... – falou tentando disfarçar seu constrangimento.
– Posso ver de perto?
– O que você quer ver?

Em um passo já havia entrado no banheiro. Acompanhou-me com o olhar enquanto me ajoelhei à sua frente. Apoiei então os cotovelos sobre os seus joelhos. Conforme distanciei os braços, naturalmente abri suas pernas. Ela soltou os pés de dentro do tecido que lhe prendia. Levantou a camiseta lentamente, até a altura do umbigo. Deu um suspiro profundo. Escorregou sua mão pela minha cabeça, puxando meus cabelos curtos.

– Você já está cheio de cabelos brancos, sabia?
– Por que você faz isso comigo?
– Você sabe... é tarde demais pra gente. Eu sou como... uma prima para você. Isso, uma prima. Você tem primas? - Perguntou passando o dedo médio sobre os seus pêlos pubianos de pequenos caracóis - Achou ela bonita?
– Sim... é muito bem feita. Sem exageros de curvas, sem aquele rococó desnecessário. Você está de parabéns. É uma bela genitália. Escuta, primos se casam. Me dá um beijo. – sugeri enquanto começava a tocá-la com meu indicador.
– Você sempre insiste nessa história. Olha, entende de uma vez por todas. Amigos não se beijam na boca.
– O que é preciso pra que eu não seja mais teu amigo? Me diz, por favor.
– Só não seria mais tua amiga... não sei ... acho que se você me batesse na cara, porque nunca ninguém me deu um tapa.

Trinquei os dentes e espalmei minha mão contra o seu rosto em um único golpe seco. Seus cabelos acompanharam o baque. Olhou-me com profunda admiração. Seu nariz avermelhou, no início de um choro e rapidamente as marcas dos meus dedos tatuaram a brancura esverdeada de sua pele. Soluçou algumas palavras, com um sorriso no rosto.

– Seu filho-da-puta!

Vi suas primeiras lágrimas quando enfiei minha língua dentro de sua boca que se escancarou. Me mordeu e seu aparelho de elásticos coloridos me cortou a boca. Nos beijamos com dentes se batendo. Toquei suas gengivas com o indicador recém-retirado de sua parte elogiada.

– Sente o teu gosto...


Bati o queixo na tábua da privada quando busquei seu sexo. Afastei o rosto para observar uma dessas posições que só as mulheres conseguem. Deitou-se sobre o vaso sanitário, apoiando os pés sobre a parede atrás de mim. Controlada do choro, me pediu para que eu cuspisse na mão e esfregasse a saliva em seus seios.

– Me sinto uma puta!

O português não foi dos mais castiços. Melhor tirar as crianças da sala.

– Mete a mão na minha cara porque eu não quero nada de amizade entre nós. Bate! Bate, porra! Bate que eu estou mandando.

Algo que enerva um homem é uma mulher mandona. O segundo sopapo deu-se com a mão invertida e, desta vez, sua cabeça resvalou na parede, fazendo um som de oco. Rapidamente fiz uma promessa a São Longuinho para que não a perdesse. Por segurança a trouxe para o chão do banheiro, de onde não passaria, segundo o dito popular. Senti que meus joelhos ficariam todos marcados pelas juntas do piso, como medalhas de guerra.

Rotacionou o corpo, colocando-se de quatro. Olhou para trás, me procurando por alguns segundos até que finalmente o coito concretizou-se em penetração indelével. Abaixou a cabeça, falando uma série de palavrões impublicáveis. Determinados processos, depois de iniciados, tendem a resolver-se de maneira rápida. Fui parando meus movimentos aos poucos, desfalecendo sobre sua coloração semi-morta. Nos ajeitamos e conseguimos um modo de deitarmos lado a lado. Olhei perdidamente dentro de seus olhos, emoldurados pelo rolo de papel-higiênico Carícia Perfumado.

– Sabe o que eu queria? Que um meteoro cinco vezes maior que o Sol se chocasse agora com a Terra e que a eternidade fosse feita desses azulejos...

Ela riu. Resolvi arriscar uma pergunta disfarçada de afirmação.

– Nunca sei direito qual a cor dos teus olhos. Se verdes ou azuis..
– Pretos. Ficam azuis ou verdes dependendo da lente que eu use.
– É... olhando agora com mais atenção consigo ver que é uma lente.
– Se importa se eu fumar?

– À vontade.
– Tem cigarro?
– Vou pegar.

Coloquei uma das duas cuecas caídas no chão. Não sei se a que eu usava ou ela. Afinal de contas, homem que se preze as tem todas iguais.

sexta-feira, março 18, 2005

Como nos velhos tempos...


– Escute, Srta. Esther. Se o aparelho tocar, faça-me o favor de atendê-lo de imediato, sim? É insuportável este ruído nos meus tímpanos a tirar-me a concentração.
– Pois não, Dr. Jacó. O senhor não ouvirá sequer o segundo toque. Catarei o fone de pronto!
– Admiro tua dedicação. É certo que tens um futuro promissor se continuares prestativa como tens sido.
– O senhor pode contar sempre com meus serviços, Dr. Jacó. Estou aqui para serví-lo da forma que melhor lhe convier.
– Não me dê idéias, Srta. Esther. A cabeça de um velho maldoso é capaz de gerar os mais impublicáveis folhetins.
– Os quais me agradaria muitíssimo a leitura.

Os olhos de Dr. Jacó correram a silhueta bem delineada de Srta. Esther e um temporal de pensamentos mundanos encharcou-lhe a alma. Uma secura imediata adstringiu-lhe a glote e uma furtiva gota de súor lambeu-lhe sofregamente a fronte. A secretária espalhou seus odores femininos pelo ar espesso da repartição abandonada pelo ponto facultativo de mais uma véspera de feriado. Mas algo além da postura caxias do velho burocrata a levara, naquela manhã, aos seus afazeres datilográficos. Havia alí, de parte a parte, uma vontade quase incestuosa

– Srta. Esther, se me permite o comentário... não pude deixar de notar a impecabilidade do brilho de teu salto agulha.
– Dr. Jacó, as vezes desconfio de que o senhor me observa de cima a baixo.

– Sim, Srta. Esther. Sobremaneira. Deveras.
– Te agradaria ver um pouco mais, Dr. Jacó?

O inusitado convite da rapariga seguiu-se de gesto memorável. Como uma dançarina de molin rouge, a jovem hasteou a barra da saia, exibindo a tenacidade jovial de seu par de pernas. A generosidade do movimento expôs sua cinta-liga, roubando de Dr. Jacó a última possilidade de remorso pela traição eminente. Derrubando o porta-retratos com a foto de sua esposa, a gorda Jussara, ignorou a dedicatória que jurava amor eterno e, decidido, partiu para o crime.

– Pois bem. Trataste de atiçar-me. O que farás agora pra evitar que eu arranque de tí o que desejo?
– O que farei, meu caro? Simplesmente nada. Não percebes que quero mesmo é que me tenhas como um objeto de uso contínuo? Quero sentir tuas mãos me batendo como a um carimbo, me apertando como a um grampeador e me alargando como a um elástico de borracha.
– É uma das apologias mais descabidas que já ouvi, Srta. Esther. Mas não pensarei duas vezes em praticá-la.
– Dr. Jacó. O cheiro de tua acqua velva me inebria as idéias. Me desnorteia. Se não me apoiar em teu colo sou capaz de desmaiar aqui mesmo neste chão. E não poderia responder mais por mim mesma. E qualquer cão vadio poderia aproveitar-se de mim neste instante.
– É melhor então que te deites sobre minha mesa, que é espaçosa e sem uso. O que me preocupa é o óleo de peróba que poderia manchar tuas roupas.
– Ó, Dr. Jacó. Então só me resta despir-me, concorda?

A moça descartou peça a peça o vestuário, sempre a fitar os olhos de seu superior que, rapidamente, também tratou de livrar-se das calças, camisa e paletó, ficando somente com o sapato preto e as meias sociais. O janota fartou-se das volúpias da assistente, sem qualquer tipo de cerimônia, incorrendo inclusive em práticas sodomitas que sempre abominara. Desde então não se passa semana sem que Srta. Esther leve uma carimbada e seu sorriso, de orelha a orelha, comprova ter adorado a General Eletric, recém-chegada e embrulhada para presente, em seu kitnet no Méier.

sábado, dezembro 11, 2004

Foi... Episódio final

Na saída da escola parei em um boteco próximo e comprei as duas carteiras de cigarro que a Madame encomendara. A nota de dinheiro que havia me dado não era suficiente e ainda tive que tirar centavos de cruzeiro da passagem do ônibus. Mas era por uma nobre causa; somente as mulheres devem ter seus vícios alimentados. Como voltei a pé, correndo, cheguei esbaforido e depois do horário combinado. Apertei o meu andar e subí até o 6º pelas escadas.

Toquei a campainha com os charms e o estômago nas mãos.

– Entra. Você está atrasado.
– Tive que voltar a pé da escola. Estava sem dinheiro pro ônibus.
– Que seja, meu filho. Que seja...
– Olha aqui os seus cigarros, Dona Isadora.
– Não tinha box?
– Não sei...
– Deixa pra lá. É a mesma coisa. Está com sede? Quer água?
– Quero sim, senhora. Obrigado.

Quando Dona Isadora abriu a porta da geladeira, a luz transpareceu sua camisola, que anos depois aprendi chamar de combinação. Foi a primeira visão paradisíaca da minha vida, fora as arquibancadas do Maracanã. Era, de fato, pouco pano para cobri-la de maneira descente. As alças eram muito finas para sustentar o tecido acetinado sobre um par de seios maduros e o decote generoso mal cobria o "Y" de seu colo.

Me deu o copo nas mão e sentou-se em uma poltrona num dos cantos da sala. O apartamento estava escuro, protegido pelas cortinas pesadas que escondiam o sol que batia de frente no horário da tarde, transformando o ambiente em um forno. Estávamos suados os dois. E eu não sei qual tipo de calor, de fato, eu sentia.

– Garoto, sabe mexer naquela vitrola?
– Sei sim.
– Ótimo. Procura um disco de capa escura que está nessa pilha sobre a cadeira.
– Este aqui?
– Esse mesmo. Coloca a última do lado B.

Pesei demais a mão e a agulha deu uma pulada ainda no final da faixa anterior e fiquei preocupado de ter arranhado o disco. Em seguida, entrou a música que a Madame pedira.

– Senta nessa poltrona de frente pra mim.

Acendeu o último cigarro de um de seus maços e ficou me olhando, enquanto eu pingava no veludo avinagrado de sua mobília de gosto duvidoso. Com os primeiros versos de um tango ela começou a sequência mais inesquecível de minha vida adolescente.

"Na te debo

Na me pido
Me voy de tu vera, olvidame ya
He pagao con oro tus carnes morenas
No maldigas, paya, que estamos en paz"

Dona Isadora deixou cair a primeira alça de sua combinação e me mostrou seu seio esquerdo. E me olhou nos olhos. Passou o indicador nos lábios e cuspiu sobre o dedo. Em seguida, esfregou a saliva no seu mamilo que, de imediato, enrijeceu. Sempre tive olhos grandes, mas acredito que nesse momento eles estivessem tão exagerados que eu parecesse um peixe-binóculo de aquário.

"No te quiero

No me quieras
Si tu me lo diste, yo na te pedí
No me echas en cara que to' lo perdiste
También a tu vera yo todo perdí"

Foi-se a segunda alça. Ela desencostou da poltrona e estufou o tórax, assumindo ares de escultura grega de mármore branco. Segurou os seios por baixo, enchendo as mãos, ora os apertando, ora os sacudindo. Certamente percebeu meu olhar extasiado e o tergal da calça colegial cagoetou minha excitação. O amargo de minha gastrite precoce me veio à boca. Seu coro de 666 anjos caídos me ordenou de maneira inconteste:

– Vem, garoto. Vem te servir.

"Bien paga

Si tú eres la bien paga
Porque tus besos compré
Y a mi te supiste dar
Por un puñao de parne
Bien paga, bien paga
Bien paga fuiste, mujer"

Levantei do estofado, parei em frente à sua poltrona e me ajoelhei, como aprendera nas aulas de catecismo, para finalmente receber o sacramento de minha primeira comunhão. Apalpei e abocanhei suas tetas macias de grandes auréolas. Quando a língua de Dona Isadora me invadiu a boca senti o gosto do tabaco e sua respiração sôfrega e pesada me fez concluir que seria melhor que ela parasse de fumar.

– Levanta, garoto. Fica de pé.

Em pouco tempo me foram as roupas, inclusive a camisa com escudo do colégio no bolso. Beijou minha barriga, minha virilha, esfregou seu rosto no meu sexo e o segurou com força, muita força. Começou a manejá-lo freneticamente até colocá-lo de uma só vez na boca. Desde minha febres infantis não sentia calor tão intenso e não lembrava de minhas pernas tremerem tanto. As unhas da Madame correram meu peito e minhas pernas. Doeu, mas não foi ruim.

"No te engaño

quiero a otra
No creas por eso que te traicioné
No cayo en mis brazos
Me dio solo un beso
El único beso que yo no pagué"

Deitou-me no chão, com as costas sobre os tacos de madeira. Ficou de pé, me emoldurando com suas pernas, em um ponto de vista monumental. Sacou da cintura a peça que ainda a semi-vestia. Os cabelos de sua vulva, naturalmente grandes, desenhavam pequenos caracóis que escondiam mais do que mostravam. Desceu lentamente o corpo, ficando de cócoras, parando sua cabeleira por demais perto de minha ereção. A posição entreabiu seus lábios e pude ver o seu interior, desabrochado como uma rosa vermelha. E, como até então, eu nunca havia recebido flores, seria muito bem vinda a novidade.

Segurou com as pontas do dedo minha glande e a enconstou no seu carmesin. E deixou o peso de seu corpo fazer o resto. E um grito nos escapou dos rins, eu acho. Apoiou-se com os cotovelos ao lado de minha cabeça e seus seios penderam sobre o meu rosto. Ordenou que os mordesse. Atendi, logicamente. Esfregou-se sobre mim, de todas as formas, para cima e para baixo, de um lado a outro, em movimentos circulares. Me deu mais ordens que não entendi, mas que mesmo assim tentei cumprir:

– Ainda não, menino. Ainda não. Espera só mais um pouco.

"Na te pido

Na me llevo
Entre esas paredes dejo sepultas
Penas y alegrias, que te doy y me diste
Y esas joyas que ahora pa' otro luciras"

Em determinado ponto da conversa seus movimentos aceleraram e um choque elétrico me correu de trás das orelhas até os dedos mindinhos e senti que havia um formigueiro dentro de mim.

– Isso, moço. Agora. Agora. Agora, moço.

Quando as minhas formigas correram para dentro de suas carnes, Dona Isadora expulsou um jato cristalino, que me batizou e banhou o chão de sua sala. Desabou seu peso sobre mim, me cobrindo a respiração com os cabelos. Minhas pernas indicavam ainda uma ou outra corrente elétrica. Ficamos assim alguns minutos até que se levantou e fez um rabo-de-cavalo com um elástico. Observou a Phillips vermelha girando sem parar o final do LP, já sem tocar qualquer música. Retomou sua posição na poltrona e me orientou a ir até o seu armário do banheiro.

– Me traga a garrafa de álcool.

Da mesma forma, voltei a ficar à sua frente, como havia vindo ao mundo; ou quase. Derramou um pouco do líquido nas mãos e me segurou pelo cabresto. Tentei escapar, mas ela me prendeu. Senti uma ardência insuportável e uma lágrima fugiu-me do olho.

– É preciso,moço. Não há prazer que não traga alguma dor a reboque. Mas não se esqueça que da vida só se leva isso. Dores e prazeres. Espero que a balança te seja favorável, meu querido. Quando sair, leva essa carteira de cigarro vazia e joga na lixeira, por favor.

A encontrei ainda poucas vezes no elevador. Mas, em menos de um mês, mudou-se. Não deixou endereço. Nunca mais a vi. Nunca esqueci. E o que me ensinou tem se mostrado verdade até hoje.



Não joguei fora a carteira de cigarro como Dona Isadora pediu. E a música, que levei anos para encontrar, se chama "La Bien Paga", de R. Perelló e J. Mostazo, gravada por Canaro e Eduardo Adrián, em 1942.

sábado, dezembro 04, 2004

Será que agora vai? Episodio 02

Em algum tempo já era até de uma certa tranqüilidade falar banalidades com a madame no elevador. Dizia se teria prova, se havia estudado a matéria ou não... Enfim, ela educadamente demonstrava um interesse respeitoso aos meus problemas menores de adolescente. Contudo, a facilidade do contato me tirou certos cuidados, reestabelecidos pelo coro demoníaco de sua voz:

– Mario; o meu decote... pare de olhar para ele.
– Desculpe. Eu não estava...
– Se não estava olhando, por que as desculpas?
– Não sei. Mas acho que não estava não.
– Quer olhar para meu decote, não quer?

Não sabia se tinha olhado ou não. Mas depois que ela tocou no assunto, o desejo tornou-se irreversível. A encarei nos olhos e sacudi a cabeça afirmativamente, como um réu confesso.

– Então olha, meu filho. Não adianta eu dizer que não.
– Obrigado, Dona Isadora.
– Ora, mas é um tarado educado. Pelo menos isso. Posso me aproveitar dessa tua boa educação? Me faz um favor?
– O que a senhora quer?
– Que horas você chega da escola, garoto?
– Quinze pra uma.
– Faz uma coisa pra mim? Toma aqui esse dinheiro. Quando voltar me compra duas carteiras de Charm. Sabe qual é esse cigarro? Um dourado, comprido. Compra e passa no meu apartamento quando chegar do colégio.
– Se souberem lá em casa que eu comprei cigarro...
– Só vão saber se você contar. Eu não vou falar nada pra ninguém. É nosso segredo.
– Tá bom. Eu compro e levo pra senhora.

A aula daquele dia demorou mais que um ano letivo inteiro. Sentia um rombo no estômago que tentei curar com um sorvete no hora do recreio. Comprar aqueles cigarros me faria sentir o maior criminoso do mundo, mas eu não poderia abrir mão de ter um segredo com Dona Isadora.

sábado, novembro 27, 2004

Não foi, mas poderia ter sido... episódio 01

Os saltos-altos de Dona Isadora me guiavam como um sonar. Eu sabia em qual cômodo do apartamento ela estava só de acompanhar seu deslocar pelo andar de cima. Essa vigília se transformou em uma obsessão, até que descobri uma coincidência irresistível nos nossos horários. Saíamos simultâneamente de manhã, eu para a escola e ela, acredito, para o trabalho. Logicamente comecei a ajustar meu tempo ao seu, forçando encontros diários no elevador, como se o acaso fosse sistemático.

Ela sequer me olhava, quanto mais dizer "bom dia". Eu então nem conseguia tirar os olhos do tapete. Ficava tímido até para apertar o botão térreo. Confesso que discretamente olhava para suas pernas, sempre embrulhadas a vacuo por um par de meias pretas transparentes. Me torturava uma listra mais escura que subia do calcanhar até dentro de sua saia. Perifericamente eu percebia seus cabelos negros armados de laquê e o excesso de pintura para aquela hora do dia. O cheiro de seu perfume francês anos 50 disputava, aos tapas, com sua murrinha de tabaco o pouco ar do recinto móvel. E isso me dava uma enxaqueca confortável. Mas Dona Isadora tinha presença. Um par de seios sophialoren recheando a camisa acetinada de tom roxo e botões de madrepérola.

Um dia ela falou comigo com a voz de uma legião de demônios roucos.

– Garoto, qual teu nome? Todo dia te encontro nesse elevador.
– Sou seu vizinho do andar de baixo, do 504.
– Mas qual é a sua graça?
– A graça é toda sua.

Respondi cometendo uma das maiores gafes da minha vida. Ela deu uma gargalhada sonora e assim que saiu do elevador já foi sacando uma carteira de cigarros. No caminho da rua insistiu na pergunta que o nervosismo me surdeara.

– Qual teu nome, meu filho?
– Mario, senhora.
– Até amanhã, Mario.
– Até amanhã.

Ela deu uma piscadela e sorriu com somente um dos cantos da boca. Segui até o ponto do ônibus com as pernas trêmulas, a garganta seca e uma história que deixaria todos os meus colegas morrendo de inveja. Desculpem o clichê, mas a primeira vez é inesquecível.

quinta-feira, novembro 25, 2004

Ventos, flores e pedalinho

Um sopro, dos mais lívidos, tocou-me a fronte. Desses raros de se sentir, porque não somos atentos aos ventos e seus caminhos. Se cada homem é uma cidade em sí, algumas esquinas – falo de encontros – apresentam uma leveza insustentável, como no livro de Kundera. Frágeis como bolas de sabão, da mesma forma, vão-se em brisas. Guardem no coração, pois é impossível aprisionar forças da natureza. Sabendo que o ar escapa pelos dedos, ainda joguei a peneira sobre o redemoinho, como se fosse verdade a lenda de prender o Saci. Bem, eu tentei:

"(...) hoje ví flores com cara de cachorro-sem-dono, loucas por uma dona que as bem cuidasse. Achei que tuas brisas as fariam bem, então tomei a liberdade de te dar de presente para elas que, certamente, ficaram risonhas de orelha a orelha. Por outro lado, confesso que pensei que elas me passariam um e mail ou telefonariam para dizer se tinham gostado de tí. Mas bem sei que flores são muito ocupadas. Por precaução, já alertei aos cactos de minha casa que brisas são incertas; chegam quando menos se espera e vão nos deixando um alento nos cabelos. E algumas são boas demais, mesmo que somente nas lembranças. Porém, é certo que ventanias surgem de marolas de vento que, em determinado momento, enchem as velas de barcos modorrentos, fazendo até galeões velhos cruzarem oceanos. Enfim, flores e cactos estão alertas à imprevisibilidade do tempo. A mim, tem me dado prazer pensar na janela aberta que pode me trazer algum dos teus ares, sejam vendavais ou tais brisas. Mas não poderia deixar de te agradecer por elas (...)"

Pois bem. Como previa, os ventos cessaram. Mas tudo bem. Ao menos levo um sorriso no rosto, enquanto faço andar o pedalinho.

domingo, novembro 14, 2004

Uma lembrança de chuva


Uma história para quem não tem medo de água fria, textos grandes e mulheres complicadas.

Ela entrou no carro com jeans apertados. Uma camisa branca de botão e, por baixo, uma malha hering. Pôs o cinto de segurança, atrapalhando o beijo no rosto. Seus cabelos soltos, ainda molhados, cheiravam a condicionador das Lojas Americanas. Seu batom escuro lhe dava um ar vampiresco que me abriu um rombo no estômago. Mulheres que me interessam me causam uma gastrite irresistível. Casaria naquele momento, diante de padre e testemunhas e receberia os convidados para os cumprimentos e, por perversão, chamaria seu namorado para padrinho. Acabamos tomando o rumo do jornal.

- Tá vestida de menino hoje?
- É. Em dias chuvosos me visto sempre assim. Não gostou?
- Gostei muito. Jeans apertados me dão tesão.
- Eu sei. Eu já percebí que você olha pra toda mulher que entra na redação com calça apertada. Você é muito óbvio.
- Você hoje está uma chata. O que aconteceu? Você não parecia muito bem quando me telefonou. Com essa chuva vamos chegar atrasados ao trabalho.
- Entra aqui à direita. Cara, eu estou bem. Só queria bater papo-furado e aproveitar tua carona, só isso. Que música de velho é essa?
- Summertime, com o Sam Cooke. Essa versão é boa demais.
- Eu tô vendo que você gosta. Já tocou três vezes. A fita inteira é com essa música?
- É sim. Gosto de gravar várias vezes na mesma fita para poder ouvir até enjoar. O que você gosta de escutar?
- Gosto de escutar sacanagem no pé do ouvido. Tô brincando... não fica sem graça, não... eu escuto de tudo. Só não gosto de pagode e axé music. Por isso que não vou em churrasco. Meu namorado é que adora essas porcarias. É bundinha pra cá, a dança da galinha pra lá... um saco!
- E vocês voltaram? Vão voltar?
- Não sei. Eu quero me casar. Nós já namoramos muito tempo e quero resolver logo essa situação.
- E você vai casar só pra resolver uma situação?
- O que você quer que eu faça? Acabo ficando pra titia... Você casa comigo?
- Agora! Se você quiser... com padre, testemunhas e depois ainda aperto a mão de todos os convidados. E chamaria teu namorado pra ser meu padrinho.
- Mentiroso. Vocês, homens, mentem muito.

Com todos os sinais fechados, em meia hora não havíamos chegado ao final da primeira rua. A chuva era murrinha e o tempo esfriava. Me pediu para trocar a fita. Permiti, logicamente. Resolveu sintonizar uma estação de rádio. "Música de elevador", definiu. Passaram-se cinco minutos e começou a tocar Summertime, exatamente na voz de Sam Cooke. Rimos juntos da coincidência, como somente velhos amigos fazem. Em seguida, outra canção triste como a anterior. Calou-se alguns segundos e começou a chorar, borrando a pintura do olho e avermelhando o nariz. Coloquei a mão direita sobre sua perna, abandonando o câmbio do carro. Não falei nada ou olhei para seu rosto. Só escutávamos o barulho da borracha que se esfregava irritante no pára-brisas. Espalmou sua mão sobre a minha e nossos dedos se entrelaçaram em abraços. Começamos a brincar, um tentando prender o polegar do outro. Sorríamos quando alguém vencia o jogo.

- Você é bobo. Um bobalhão.
- Você também é uma boboca.
- Você engordou, sabia?
- Uns dois quilos, eu acho. Me beija a boca?
- Não posso. Sou sua amiga e amigos não se beijam na boca. Olha, andou o trânsito...

A locutora da rádio informou, com voz de veludo: "(...)quatro e vinte. Você escutou, na Antena Um Fm, Vendaval com Ed Motta, Summertime com Sam Cooke, For my Lover com Tracy Chapman e Coisas da Vida com Rita Lee. A cada hora, cinqüenta e quatro minutos de música".

O céu estava escuro como noite. O jornal, próximo. Tirou toda a maquiagem e planejou dizer que estava gripada, caso alguém perguntasse de sua cara inchada. Parei o carro na Rua Irineu Marinho, esperando uma vaga para estacionar. Passaram-se mais alguns minutos até que perguntasse:

- Você faz questão de trabalhar hoje?
- Sinceramente? Nenhuma...
- Que desculpa a gente daria para não ter vindo?
- Que não estávamos a fim...
- Eu digo que estava resfriada...e você... você está com dor-de-barriga. Que tal?
- Não pode ser o contrário?
- Vamos embora daqui? Vamos andar de carro... não quero trabalhar hoje.
- Esse tempo está bom pra ir à praia – Falei irônico.
- Acho bom. Gosto de ficar olhando as ondas quando está chovendo.

Quando uma mulher não consegue o que quer com um sorriso, é inevitável que o faça com seu choro. E fomos ver submarinos, auto-dispensados do trabalho, sem desculpa encontrada. Já era início da noite quando estacionamos de frente para a areia, sobre o arremedo de calçada, em uma praia tão vazia que até mesmo os tatuís já tinham se recolhido para tomar toddy quente com bolachas. Me contou algumas histórias com sua voz de língua presa, brigando com o aparelho dentário. Por curiosidade, perguntei se era removível. Ela o retirou, criando com a saliva uma imitação do bondinho do Pão-de-Acúcar. Tudo nela é fantástico, até sua baba. E apesar de um dente acavalado sobre o outro, eu gostava demais do seu sorriso. Pequenos defeitos fazem mulheres perfeitas.

Quando era bem mais novo, na idade dos doze, sonhava com beijos em garotas da minha escola. E pensava em voz baixa "ainda bem que não é sonho.. está acontecendo de verdade". Por ironia, acordava logo em seguida, com os lençois opulados e uma frustração cheirando à água sanitária. Tinha medo de ser o mesmo caso agora. Voltei à realidade com ela olhando por sobre o ombro direito, procurando o pino da porta.

- Escuta, maluca... vai molhar tudo aqui dentro.
- É mesmo... desculpe... não estou pensando direito. Pra falar a verdade, estou cansada de pensar. Cansada dessa porra toda... desse filho da puta empatando a minha vida. De saco cheio de trabalhar em jornal, de só dar notícia de desgraça. De não conseguir ver a novela das oito... de ter que acordar cedo sábado de manhã pra ir na manicure... de ralar o mês inteiro pra cobrir o especial do Itaú... porra... estou cansada, só isso.

Seus olhos marejaram. E os meus também, em solidariedade. Cruzou as pernas e desamarrou os tênis dos pés. Tirou suas meias brancas de 70% algodão + 30% poliester e estalou o dedão, ignorando tudo que aprendera no curso de etiqueta da Socila. Encolheu milímetros de barriga e abriu o zíper, em movimento único e contínuo. Usou os polegares para conduzir o tecido grosso através das pernas, ficando apenas com a calcinha, da cintura para baixo. Por fim, enfiou as mãos por dentro da camiseta e soltou o sutiã, o tirando pela gola.

- Você não vem?
- Pra onde?
- Dar um mergulho.

Respondi tirando os sapatos e minha camisa, os abandonando em algum lugar do banco traseiro. Paramos lado a lado, sobre a areia molhada, esperando a primeira lambida de água nos pés, sentindo o frio como se fosse gilete nos tutanos.

- Toda novela tem um casal correndo na praia. Todo filme... isso que estou fazendo é o maior lugar comum, não acha? Queria ser menos óbvia. A água deve estar um gelo... eu tô com medo...
- Vamos juntos então. Me dá a tua mão...

Entrei no mar protegido pelo brim da calça. Na sua vez, deu pequenos pulos e alguns gritinhos – frescuras de mulher. Larguei sua mão e mergulhei por sobre uma marola. Dei um par de braçadas até que compreendesse a água fria. A louca, ou corajosa, me acompanhou, falando palavras que não escutaria nem por decreto. Parou à minha frente, com os lábios roxos. Afastei com o indicador seus cabelos do colo. Ela se permitiu ver pela transparência do tecido molhado.

Corri os olhos em seu pescoço comprido. Observei como ele descansava em suas saboneteiras, prenúncios de seios de círculos perfeitos. Logo abaixo, costelas encaixadas seqüencialmente, protuberantes e discordantes do abdômen macio. Mordi com os olhos a barriga que se completava em uma vulva de cabelos negros e pouco aparados, vários deles escapando por cima e pelos lados de sua roupa mais íntima, sustentada por elásticozinhos que brincavam nos ossos de sua virilha. Enfiei a mão em sua calcinha e a puxei para perto de mim. O pouco tecido adentrou suas carnes antes de trazê-la. Ela entreabriu as pernas, intercalando seu interesse entre seu próprio sexo e os meus olhos.

- Você está vendo ela?
- Estou sim... é linda...
- Estou te mostrando, tá vendo? Tá gostando de ver? Você é o terceiro homem pra quem me mostro. Os outros foram meu namorado e o meu ginecologista.
- É a mais linda que já ví.
- Pena que não seja para você.

Virou-me o rosto quando me aproximei.

- Sou sua amiga. Já falei. Amigos não beijam na boca.
- Queria te pedir um favor. Foda-se a nossa amizade, tá bom?
- Não... nunca... agora fiquei triste. Sua amizade é algo que quero pra sempre. Acho que é melhor voltarmos pro carro. Estou congelando.

Depois disso, ainda tive que deixá-la no Méier, levar o carro para lavar e tirar a areia do estofamento. Na hora da despedida, jurei que manteria segredo do nosso mergulho. Me deu um abraço me felicitando por ser seu melhor amigo, seguido de um tapinha nas costas, mais doloroso que um murro nos cornos. Amizade? Algumas mulheres se contentam com muito pouco.

terça-feira, novembro 09, 2004

Se eu trabalhasse no circo, eu seria o palhaço



Acho tão engraçado quando te olhas no espelho e alisas a barriga reclamando das formas. Ora, estou certo que fazes por pura chantagem, esperando elogios. E quando a blusa te abandona e seguras os seios por baixo, desejando que fossem mais firmes... da mesma forma, é quase uma ironia. Bem sabes que o que mais me agrada é a tua naturalidade. Não fosse assim eu não encheria minhas mãos de tí.
Quando andas pela casa, despreocupada das roupas, me abres um buraco no estômago, uma fome que me dá vontade de te engolir. Definitivamente, desconsidero todos os teus "agora não". Agora sim, guria. Não estava quieto no meu canto? Pois bem, não se brinca com um homem e me darás de comer.
Quando você me virou a mão na cara, confesso que quase estranhei. Afinal, já tinhas me pedido tantas vezes pra fazer exatamente aquilo. E daí se te olhei do jeito que olhei? Não é assim que gostas que eu faça com que te sintas? Então, só atendi às tuas vontades. A meu favor o teu sorriso, logo em seguida.
Por que fazes de conta que não me abrirás as pernas. Sei muito bem onde destranco tuas portas... é como uma brincadeira de fazer parecer exatamente o contrário do que se quer. Pronto. Já estás escancarada à minha frente. Agora és tu que estás com pressa. Pressa de quê? Espera um pouco... vamos jogar o jogo. Deixe que fique somente no hall de entrada, por enquanto.
Por favor, decida onde queres a minha língua. Somente as mulheres são capazes de malabarismos circenses nessas horas. Os homens são naturalmente menos contorcionistas e mais diretos ao ponto. Mas até que me esfoço para acompanhar tuas genialidades.
Confesso, já não sei o que é suór meu ou teu, língua minha ou a tua. Mas se é verdade quando dizes que sou teu dono, então tudo é meu, não faz diferença. Talvez por isso tenhas levado metade de minhas costas nas tuas unhas, em troca de uma mordida no meu ombro. Perigoso negociar contigo – tua política é muito agressiva.
Nem percebes que o cheiro do meu visco exala de dentro das tuas entranhas, enquanto descansas entreaberta, como no quadro de Coubert, dando origem ao mundo. Bom mesmo é te usar de travesseiro, e teus dedos nos meus cabelos e os meus, nos teus pelos. E dormir depois que me contas a mesma história, cada dia de um jeito diferente.
O que vai ser de tudo isto, não tenho a menor idéia. Me levaram a bola-de-cristal. Com o tempo somos só um saco de lembranças e um cheque especial estourado no banco Itaú. O que nos mata é a nossa própria vida. Inimigo mais indestrutível este, não acha? Mas o que nos salva é a vida do outro. Tu és a minha fortaleza e quando te distrais, me escondo dentro de tí. Viver para sí próprio não faz o menor sentido. Acho que só sou quando tu estás.

segunda-feira, novembro 08, 2004

O Herói desta semana e de outras tantas



Depois de deixar para trás uma fileira de negões de Camarões, Romário comemora o seu gol de biquinho, no canto do goleiro, na Copa dos EUA, 1994.

Esta semana, Romário pendura suas chuteiras da seleção brasileira. O faz em meio a um monte de críticas, comentários polêmicos e, até mesmo, um certo deboche de imprensa, torcedores, técnicos e outros jogadores.
Esse tipo de coisa me lembra aquela música do Chico Buarque. A "Geni e o Zepelin". Na canção, Geni é um tipo de puta, daquelas baratas, que por onde passa leva pedradas e bostadas na cara. Um dia, um homem fardado, dirigindo um zepelin prateado da goodyear, diz que vai mandar tudo pelos ares. A única salvação é que a prostituta da Geni se deite com ele, para apaziguá-lo de tanta raiva. De imediato, todos louvam e agradecem à salvadora da pátria por seu ato corajoso e redentor. Quando o aventureiro toma novamente a estrada, recomeça o escárnio. Definitivamente, divertido mesmo era tacar na meretriz o que estivesse mais à mão.
Não é diferente o que fazem com Romário hoje. Amargos calazans da vida o criticam pela falta de compustura, pela falta de profissionalismo. Ora, convenhamos... isso é obvio. Mas não é essa mesma displicência que faz com que o baixinho dê um toque na bola com a ponta da chuteira, com certo desdém, e saia para comemorar o gol com um sorriso moleque de quem pregou uma peça em alguém?
O mais criticado em Romário é exatamente o que fundamenta suas qualidades. Aquele jeitão marrento de quem faz as coisas parecerem fáceis. Mania de brasileiro, que ganha 240 real por mês e rí de tudo. Gente que faz a vida parecer uma novela global, menos óbvia e cretina. Romário é o herói sem caráter. Romário, tu trazes em tí as cores de todas as raças, suas malandragens boas e ruins. Roubaste o amuleto do gigante, com a mesma ciência que usaste para fazer tantos gols sobre goleiros e zagueiros, igualmente grandes. Que cessem as críticas a Romário e que seja reverenciado seu desleixo com ares de onipotência. Se nosso sorriso é banguela, pelo menos é de orelha a orelha. Romário, tu és o Macunaíma.
Romário construiu seu próprio milagre, saiu da miséria, ficou milionário jogando bola e nos levou a todos a reboque. Ele foi seu próprio santo, torto e desvirtuado, mas de graças incontestáveis. Se transformou na esperança de um povo que abriu mão de dar certo. Nos redimiu, como dizia o Nélson Rodrigues, do nosso complexo de vira-latas. Talvez tenha feito melhor ainda. Conseguiu latir mais alto, mesmo sendo um cão vagabundo. Romário, tu és o melhor amigo do homem, seja sua camisa do Vasco, Flamengo, Barcelona ou Seleção. Romário, para mim tu és um tipo de Santo.
Imagino como deve ser difícil aceitar que acabou-se o tempo das façanhas. Mas escuta, mulato: eu ainda tenho guardada na memória a curva da bola que correu do lado de fora do teu pé... como os zagueiros te perseguiram em fila, esticando o braço, querendo te agarrar pelo "onze" da camisa. E quando te colocastes à frente de todos eles, me deste uma carona para longe de frustrações ancestrais. Parece que foi ontém que paraste em frente ao goleiro, escolheste um canto e chutaste seco, no fundo das redes, todas as dúvidas que me aparecem frente às encruzilhadas. Me vingaste de muitos inimigos quando os deixastes de bunda no chão, resolutos de tua genialidade. E quando abriste os braços para comemorar, te abracei como um negro fujão a um Zumbi dos Palmares. Romário, tu és para mim um tipo de Mártir.
Romário merece um monumento na Avenida Presidente Vargas. Merece ser a própria avenida. Avenida Romário de Souza Faria. Muito mais justo que a homenagem ao ditador suicida. Merece até mais... merece ser um feriado nacional, logo após o Carnaval. É muito mais a cara do nosso povo. Romário merece, no mínimo, o nosso respeito e nossa gratidão. Obrigado, Romário.

sexta-feira, novembro 05, 2004

Ao telefone com um velho conhecido



Dia desses, arrumando gavetas, encontrei cadernetas velhas, do tempo de colégio. Relí algumas, minhas notas, minha pontualidade... enfim... havia até me esquecido que ja fora bom aluno. Uma delas, a do ano de 1986, me chamou a atenção por ser a primeira com número de telefone. Demoramos para ter um em casa. Estava lá, escrito com minha letra mesmo... 254-0439. Pensei em telefonar e perguntar como estavam as coisas. Queria muito falar com minha mãe. Se fosse o meu pai que atendesse, acho que desligaria... Tomei coragem, disquei os números.

– Alô.
– Alô. Queria falar com a Elizabeth, por favor.
– Ela não pode atender agora. Você poderia ligar depois?
– Ligo sim. Mas quem está falando?
– É o Mario Guilherme. Sou filho dela.
– Oi. Você não está me reconhecendo não?
– Não. Quem está falando?
– Sou você. Sou eu mesmo que estou telefonando.
– É o Mario? É eu mesmo?
– Sim... estou telefonando pra falar com a mamãe. Ela não está?
– Olha... está... mas não seria legal falar com ela agora.
– E você... como você está?
– Ah, estou bem... você está bem, já que eu sou você mesmo e você é eu, não é? Bem, estamos bem, eu acho.
– Hoje é dia de briga ou é dia de paz aí em casa?
– Hoje está um dia normal...
– Dia de briga, não é?
– É... o de sempre...
– Que merda, cara... sinto muito.
– Sua voz é de alguem mais velho do que eu. Com quantos anos eu estou agora?
– Estamos com 33 anos.
– Caramba... e está tudo bem? Quero dizer... está todo mundo vivo, o que aconteceu da gente, de todo mundo?
– Sim... estamos todos vivos, por sorte e pela graça de Deus, eu diria... mas muita coisa mudou.
– Eu já estou casado, hein?
– Não... estamos solteiros ainda.
– Pô, mas pelo menos eu já tive alguma namorada, não é?
– Já... já tivemos sim.
– Bonita? Loira ou morena?
– Todas morenas... todas bonitas...
– Mais que uma, é?
– É... foram algumas poucas, mas todas especialíssimas. Posso te falar uma coisa, guri? Não te preocupes de esperar, não... ainda vai demorar um tempo, mas Deus vai colocar mulheres maravilhosas na tua vida... elas vão ter paciência contigo, vão te ensinar montes de coisas... Te consolarão, serão tuas melhores amigas... te darão força e colo... e vão fazer com que tua vida seja mais fácil, mais leve... e teu coração se renovará com todo o bem que elas te farão...
– Que bom... pensei que ia ficar zerado pro resto da vida... Que mais você me conta? Fala mais...
– Na verdade liguei pra falar com mamãe...
– Olha, teve um lance daqueles aqui em casa... você sabe como é, não é?
– Não queria te falar muitas coisas, para não estragar a surpresa da tua vida... porque as coisas acontecem dentro de uma lógica própria e você vai gostar muito de vivê-las. E te garanto, não vais querer trocar tua vidinha simples e comum pela de ninguém. Apenas fique tranquilo, meu querido... as coisas vão se resolver, acredite. Tudo vai ficar bem...
– Vai mesmo?
– Vai sim... presta atenção no que eu vou te dizer agora. Fique sempre do lado de mamãe, ela vai precisar de você... tudo ela faz por você, todas as coisas que enfrenta. Vocês juntos vão superar tantas coisas que se eu te falasse, você não acreditaria. E olha... sei que é difiícil... mas desculpe o papai. Sei que não dá pra entender determinadas coisas... que elas não fazem sentido nenhum... sei como teu coração se enche de revolta, de incompreensão... mas guarde perdão dentro dele porque te será de muita utilidade no futuro... E o velho vai precisar de você... e você passará a tratá-lo como um filho. A vida dá muitas voltas... e é preciso ter o coração limpo pra encontrar o passado na esquina.
– Eu não sinto raiva dele...
– Eu sei, meu querido... eu sei... continue assim.
– Mas eu tenho medo de não conseguir... você sabe... é muito difícil...
– Escuta, meu querido... coloca agora toda tua atenção em mim, porque o que vou te falar é muito importante. Você vai conseguir... Não pensa muito, não tenta entender... só respira fundo e faz como na píscina do clube. Só saia debaixo da água quando tiver chegado do outro lado.
– Mas isso me estoura os pulmões...
– Mas você vai conseguir... quero te dizer que sinto orgulho demais de tí. Tudo que sou eu devo a tua perseverança. Hoje a vida nos é bem mais fácil, meu amado. Olho para tí, na foto desta caderneta, e sinto uma inveja boa da tua força, do tempo que teu coração acreditava ser capaz de tudo. Quisera eu ser o homem que tu és e transformaria o mundo com o que eu sei hoje. Mas essa tua coragem se perdeu pelo caminho, caiu em desuso quando as coisas se acalmaram. E graças a Deus elas se acalmaram, minha criança. Mas, acredite, és capaz de tanto que se eu te contasse ririas de mim. Mas te guardo no mais profundo de meu coração e tuas lembranças me dão dignidade pra olhar no espelho e saber que muito já fiz. E por respeito a tudo que tu és, eu devo continuar sendo.
– Obrigado por ter ligado... me consola saber que as coisas vão se resolver. Se puder, liga de novo... me diz uma coisa? O Brasil ganha essa Copa?
– Não... o Zico vai perder um penalti contra a França e a gente vai ser eliminado.
– Dúvido, mentiroso! O Zico não perde penalti nunca.
– Não esquece das coisas que eu te falei... elas são mais importantes que essa Copa. A gente só vai ganhar outra em 94.
– Tá bom... liga mais tarde e a mamãe fala com você.

Mal desliguei o telefone e sentí saudades de mim mesmo.

quarta-feira, outubro 13, 2004

Egon Schiele ao telefone



Pois bem.Então, como eu ia dizendo, Egon Schiele me telefonou dia desses. Não me lembro literalmente tudo que conversamos, mas entre lamentações mútuas, alguns trechos ainda me vêm à memória.
– Mario?
– Sim.
– É o Egon.
– Ora, como vai, tudo bem?
– A mesma vidinha de sempre...
Na maior parte da conversa, o austríaco queria saber como anda o Flamengo. Schile tornou-se rubro-negro quando no final dos anos 80 a Seleção Brasileira fez um amistoso na terra da valsa e o Andrade, meio-campista da Gávea, fez um golaço. Depois caimos em discussões menos importantes, entre elas, de onde viemos, para onde vamos, e os destinos da humanidade.
Nestes assuntos concluímos, em conjunto, coisas interessantes. Primeiro ele me falou de sua fixação pela figura feminina. De desenhá-las quase papanicolauensemente.
– De fato não há mais nada que valha tempo, tinta sobre a tela, que não seja a mulher. Concorda? Pois bem. Então, é para elas que dedico meus maiores esforços. Posteriormente, pinto a mim mesmo. Faço auto-retratos não por me achar interessante sobremaneira. Mas porque pinto para agradar a ninguem e talvez eu seja desagradável para a maioria, enfim...
– É mas identifico belas paisagens nas tuas pinturas e alguns motivos religiosos, alguns poucos santos e cristos...
– Sim, é verdade. Mas entre pintar o cristo e pintar a mim, não vejo diferença. Quando qualquer pintor consubstancializa a figura do cristo, na verdade pinta a sí mesmo.
– Concordo. Vou mais além, já percebeu que estes temas são os mais retratados na história da arte, a mulher e o cristo? Logicamente há frivolidades descartáveis de impressionistas como Monet, mas não gastaria uma linha ou minuto com esse lixo.
– Sim... não vamos perder tempo com isso... fale mais do cristo e da mulher.
– Tu mesmo bem definiste. Quando pinta o cristo, o homem pinta a sí mesmo. Da figura inicial de Adão à definitiva de cristo, todos os homens estão contidos nesta genealogia, do ponto de vista teológico.
– Sim, talvez. E a mulher?
– A mulher é o caminho da volta. Ora, viemos a este mundo atavés deste túnel de carne e nervos. Fomos arrancados no nosso nascimento do mundo que pertencemos e jogados aqui, como alguma forma de excremento.
– Interessante. Mas por quê caminho da volta?
– Ora, o homem tem a limitação, o costume, de regressar sempre por onde veio, de sair pela mesma porta que entrou. Não conhece mais do que um caminho. Então desde que nasce, o homem tenta regressar à origem. Daí vem a nossa necessidade de sempre estar tentando entrar nas mulheres, percebe?
– Sim, faz todo sentido. Talvez o sexo seja mais metafísico do que físico, então.
– Sim. Sexo nesse sentido, é praticamente religião. A tentativa do Religare... da volta. Não existe forma mais eficiente de oração que o sexo.
– Oh, é verdade. Mas há suas variações... dia desses até tentei entrar pelas portas do fundo de uma modelo minha.
– Sim, é compreensível. A porta de serviço me agrada também. Mas devemos compreender que nesse sentido não é diviinal. É um erro de caminho. Prazeroso até, mas que não te levará a lugar nenhum.
– É verdade, meu caro. Agora percebo porque as mulheres não engravidam pelo rabo. Interessantíssimo. Isto esta para além do funcionamento da máquina humana. É uma questão espiritual-metafísica-religiosa.
– Sim, meu caro. Concluo que a fornicação é mais santa que julgavam e a reiligão mais pornográfica que poderíamos acreditar. Sendo assim, considero tua obra mais beata e pura que qualquer santinho de carteira. Mais vale uma gravura de pintura tua que qualquer das orações de "são" ou "santo".
– Guardarei isto como um elogio, meu caro.
– É esta a intenção, prezado amigo.
– As tintas me chamam. Vou fazer algo pensando nisso e depois te mando por e-mail, ok? Um abraço para tí, Mario.
– Outro para você, Egon.



A mulher e a morte (1915), óleo sobre tela. Egon Schiele morreu em 1918, aos 28 anos de idade. Três anos antes escreveu a sua mãe: "Toda a beleza e nobres qualidades foram juntadas em mim... eu deveria ser um fruto que viveria em eterna vitalidade, para além desta década. Quão grande deve ser o teu prazer de ter me dado a luz"

terça-feira, outubro 12, 2004

Meu amigo gitano



Poucos de vocês sabem, mas eu tenho um amigo de origem cigana. Seu nome é Yerjo, que em siganês significa "menino de pés feios e mindinhos sem unha". Após atravessar os oceanos Índico e Atlântico em uma pequena carroça, a família do pequeno nômade achou por bem aportuguesar sua alcunha para Sergio.
Em sua segunda primavera, o pequeno nômade logo foi iniciado nas tradições de seu povo e ingressou na vida social. Batizado por uma tia, cumpriu o seu rito de passagem ao engolir um solitário em uma joalheria. A expulsão do diamante deu-se em meio à uma grande festa, embalada por cantos de buleria e tangos quaternários.
Aos três anos de idade, de comportamente humilde e inocente, o pequeno Yerjo ainda corria nu pelas ruas de Goias, grande reduto de famílias zorongas. Divertia os caxeiros viajantes lendo o destino nas cartas do Tarot e decifrando as misteriosas linhas escritoras do futuro nas palmas das mãos. Junto aos iguais de seu povo, a família Pecewaska acreditava que o centro do Brasil seria a escadaria até a Deusa Kali.
Os anos transformaram o garoto pardo em um pônei arredio e seu comportamento pueril feneceu frente os ímpetos da juventude. Desenvolveu rapidamente o tino comercial e herdou o hábito secular de vender tapetes. Em poucos anos, suas tapeçarias já se espalhavam ao derredor de vários logradouros da Região Centro-Oeste. A terra árida do Planalto Central já era pouco para sua sede de conquista.
A perspicácia do patriarca pecewaskaco abriu a cortina de novas searas. Novamente colocados na estrada, agora embarcados em um trailer luxuoso, a tradicional linhagem fincou as suas tendas em terras cariocas. Desde então os ramos da nobre família infiltraram-se nos mais diversos ramos da sociedade fluminense. Hoje encontramos representantes deste secular séquito em entidades do mais alto galardão, como a Maçonaria, a TFP, a ACM e o SPC.

Em idade adulta, mais uma vez, a Deusa Kali abençoou a vida deste viajor e colocou em seu caminho uma bela companheira, com mãos de ourives, prontas a lapidar o bruto diamante e dar-lhe ares menos abrutalhados. Esta representante do povo judaico não fugiu às responsabilidades impostas por Javé e desposou o nosso querido pagão, juntando definitavamente os povos mais antigos da face da terra. Um acontecimento único. Hoje, graças aos ensinamentos da jovem Danikovitz, nosso personagem parece ter freqüentado os mais refinados cursos de noivas da Socila e abandou as pulseiras e camisas espalhafatosas de gosto duvidoso.
Tenho muito orgulho deste meu amigo e sinto muito sua falta. Ultimamente não tenho contado com a companhia de tão querido casal. Visionário que é e desejoso de difundir a maravilhosa cultura de seu povo, este herói além-mar e além-séculos abriu uma filial de seu clã em terras de Tio Sam, onde pretende reestruturar a hierarquia de suas castas sociais. Vai, querido amigo! Extende os teus braços sobre todas as terras, porque o teu lar é o mundo e o teu tempo é para sempre!

Na foto, vemos o pequeno Yerjo oferecendo seus serviços de quiromancia e tarologia aos fotógrafos da National Geografic.

domingo, outubro 10, 2004

Ave, Adão! O Trabalho e sua maldição



Quem tiver ouvidos que veja. Eu odeio trabalhar. O Trabalho é uma maldição. Não sou eu quem está dizendo... está lá... está na Bíblia, em Gênesis, 3, 16-19. Vejam:
"Comerás o teu pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de que foste tirado; porque és pó, e em pó te hás de tornar”.
Pois bem. A Eva deu ouvidos à Serpente. Adão fez pior; deu ouvidos à Eva. Estava tudo certo, estava tudo lá... era só esticar a mão e pegar. Mas esse viado desse Adão tinha que fazer merda e agora eu tenho que passar o domingo trabalhando. Adão, seu filho-da-puta!